
Conflito é um fato cotidiano e trivial da vida empresarial. Na verdade, um fato da vida. Divergências inflamadas de opinião fazem parte das relações humanas, seja no ambiente organizacional, familiar ou amoroso. A diversidade de pensamentos e pontos de vista é saudável e necessária para descortinar novos caminhos durante um debate. No entanto, torna-se um vírus social quando se transforma em briga ou disputa, declarada ou fomentada nos bastidores. O conflito, sem controle ou data para terminar, produz todo tipo de vieses para uma tomada de decisão serena e equilibrada; provoca sabotagens conscientes ou não, traduzidas em fofocas desmedidas e até mesmo traições; deteriora a qualidade das relações, afastando as pessoas umas das outras; e, numa frequência impressionante, sangra o caixa da empresa porque gestores colocam a vitória pessoal no enfrentamento acima dos interesses da empresa. Vemos isso acontecer todo santo dia.
Gestores não foram adequadamente treinados – em casa, na escola, na universidade e muito menos na empresa – para lidarem com o conflito de forma saudável, o que adiciona mais um fator de agravamento na disputa. De outro lado, o amparo de um observador, vindo de fora do antagonismo e isento das várias influências de ambas as partes, ajuda a estruturar os argumentos e a formular uma solução negociada. Nesse sentido, temos assessorado empresários e executivos, exercendo o papel de árbitros, a fim de solucionar conflitos de naturezas diversas, nos mais variados níveis hierárquicos da organização: brigas entre Conselho e presidente; entre CEO e diretor; entre diretores; entre um diretor e um gerente; entre membros de uma família que trabalham no negócio (conflitos entre 2ª e 3ª gerações, por exemplo); e assim por diante.
Para solucionarmos uma disputa, procuramos descobrir inicialmente a gênese do conflito, para depois desenharmos uma solução conjunta para sanarmos o problema. Na maioria dos casos, o conflito é provocado por causas simples, aparentemente invisíveis e, na maioria das vezes, bastante sutis:
1. As pessoas simplesmente têm percepções diferentes sobre o mesmo fato, produzindo realidades distintas. Fazemos uso de uma combinação de inúmeras referências, sentimentos e memórias ao interpretarmos um fato. Nossa reação é consequência do significado que atribuímos ao acontecimento. Esse significado é, para nós, a realidade. Assumimos essa percepção como a nossa verdade, cause ela sensações e pensamentos positivos ou não. O desafio na superação de uma divergência é conseguir alinhar essas percepções, o que muitas vezes exige um árbitro de fora para ajudar a entender e esclarecer as diferenças. Gestores fazem isso inclusive no dia a dia, a fim de dirimir conflitos entre suas equipes ao evidenciarem as diversas percepções que as pessoas desenvolvem sobre um mesmo tema, combinando entre eles qual é a percepção que deverão assumir como time.
2. Gestores têm dificuldade de estruturar e apresentar o pensamento de forma clara e com argumentos significativos para aprovarem suas estratégias e recomendações. A simplificação das metodologias e o acesso a ferramentas amigáveis de estratégia e coaching sem dúvida vieram para ficar e ajudam muito na organização e na comunicação do pensamento. No entanto, a qualidade e a consistência do conteúdo, cuidadosamente embarcado nas ferramentas, são itens que fazem toda a diferença num debate. Mais importante que o instrumento é o repertório de experiências e conhecimento do gestor ou facilitador, o domínio das nuanças conceituais, a robustez cirúrgica da análise e a habilidade de ouvir as pessoas para elaborar uma visão estratégica relevante e definitiva.
A dificuldade de articular uma visão consistente também pode ser influenciada pelo conflito de agendas pessoal versus da empresa. O gestor normalmente é acometido pelo impulso, até mesmo por uma dinâmica inconsciente, de defender um ponto de vista ou projeto pelo qual tem maior domínio ou afinidade pessoal, e para isso cria apresentações impactantes e convincentes. Defender o que é melhor para a empresa, mesmo que a hipótese contrarie aquilo que mais deseja, requer maturidade e independência intelectual.
Diferenças de conhecimento e experiência entre as partes também podem dificultar o alinhamento. Em situações de conflito, a arrogância ou impaciência do melhor preparado para com a dificuldade de compreensão do outro terminam em irritação e até mesmo troca de ofensas. Nessas horas, o uso do conhecimento como instrumento de poder para submeter a parte mais fraca é um erro comum, porque na prática a paciência para ensinar o outro e a sabedoria deveriam prevalecer com a finalidade de esclarecer o ponto de vista sobre o melhor caminho para atingirem objetivos comuns.

3. Apresentações executivas e relatórios são recheados de afirmações genéricas e de baixa granularidade. A falta de especificidade ou precisão na radiografia de um problema ou na demonstração da solução produz entendimentos duvidosos, cria tensões desnecessárias e, por vezes, desperdícios de toda sorte. Certa vez, um gestor recebeu a incumbência de elaborar um Plano de Ação para “agregar novas tecnologias ao negócio”. Essa era a nomenclatura dada a uma iniciativa do Planejamento Estratégico. Porém, não foi explicado a ele a intenção por trás daquela diretiva. Após um mês de trabalho, envolvendo uma equipe com quatro pessoas, o gestor apresentou ao Comitê Estratégico um plano que promoveria uma atualização do ERP da empresa, dos notebooks dos executivos, dos computadores das subsidiárias que tinham gaps de ferramentas para automatizar processos e outros softwares para finalidades diversas, tais como gestão de projetos. Presente na reunião – e também constrangido –, eu lembrei o grupo que aquele movimento estava voltado à automação de serviços realizados ao cliente no campo, como, por exemplo, a gestão da frota de caminhões dispersos em áreas remotas, via GPS ou satélite. A frustração daquele gestor poderia ter lançado a semente para futuros conflitos com o vice-presidente, o qual delegou a iniciativa sem uma comunicação adequada.
4. O famoso achismo ou as generalizações sem embasamento criam falsas referências que colocam mais lenha na fogueira do desacordo. Com a experiência, aprendemos que as pessoas tendem a converter ocorrências isoladas em fatos absolutos. Um exame mais aprofundado das evidências mostra que, na prática, as pessoas caem na famosa armadilha do “2 são muitos e 3 são todos”. Com frequência, ouvimos afirmações do tipo “os clientes não gostaram do novo serviço” ou “os funcionários estão revoltados”. Quando perguntamos quantos manifestaram opiniões negativas, a resposta com frequência é pífia e não permite conclusões corretas. É por isso que a gestão baseada em dados é essencial para evitar a tomada de decisões precipitadas ou baseadas em falsas premissas, auxiliando na educação do pensamento dos gestores e equipes. Embora bastante comum, esse não é um desvio de comportamento por má-fé ou desejo consciente de induzir ao erro.
Trata-se, na verdade, de uma característica comum nos gestores em geral por falta de treinamento do pensamento para evitar esse tipo de armadilha. Nessas horas, um facilitador de fora ajudaria a excluir do debate as variáveis sem substância suficiente para guiarem a discussão e a decisão.
5. Acordos sobre temas sensíveis, selados de maneira informal e não registrados por escrito, são bombas-relógio de efeito retardado. Uma das lições mais caras que aprendemos na vida é que contratos ou acordos, bem redigidos e assinados pelas partes, foram feitos para proteger as boas parcerias de conflitos futuros. A comunicação verbal de promessas e planos futuros é cercada de percepções e significados diferentes para cada um dos envolvidos. Ao dar concretude ao pensamento por meio da palavra escrita, as divergências semânticas têm maior chance de saltarem aos olhos e permitirem a correção em tempo. Óbvio que promessas não escritas são mais fáceis de serem derrubadas caso haja arrependimento no futuro, e é por isso que as pessoas evitam registrar acordos. A preferência pelo combinado oral também acontece pelo temor de a proposição de um acordo escrito ser interpretada como desconfiança na palavra do outro. Na prática, apenas adia-se o constrangimento que tem alta probabilidade de entrar em cena no futuro.
6. Traumas do passado vivem contaminando as discussões de um presente que pode ser diferente. Em português simples e claro, “gato escaldado tem medo de água fria”. O receio de reviver uma experiência frustrante do passado, impactos desgastantes sofridos numa situação parecida ou aprendizados doloridos acumulados em vivências semelhantes criam uma aversão nervosa ao fato novo. Para blindar o presente de confusões de outrora, temos de identificar quais cicatrizes de outras histórias podem estar motivando uma reação de repulsa, compreendendo a lógica da comparação. Assim, poderemos trazer à consciência o que é útil e faz sentido, e excluir da desavença aquilo que não lhe pertence.
No filme francês Intocáveis (2011), o refinado e multimilionário tetraplégico Philippe (François Cluzet) vivencia diversos conflitos com Driss (Omar Sy), um senegalês radicado nos subúrbios de Paris que foi escolhido para ser seu auxiliar de Enfermagem. As divergências e os embates entre eles fazem parte integrante do maravilhoso processo de transformação vivido por Philippe
7. Em conversas tensas, as pessoas costumam não terminar frases impactantes e não concluem o pensamento de maneira precisa e explícita. Numa discussão ou conversa dura, deixam pensamentos incompletos no ar, lacunas que acabam sendo preenchidas, muitas vezes de forma equivocada, por quem está ouvindo. Um erro de interpretação ou de conclusão do pensamento gera reações agressivas ou desvia a conversa para uma rota indesejável naquele momento, agravando o conflito. Em algum momento, caso a confusão fique clara, ouvimos o famoso “não foi isso que eu quis dizer”, ou “você não entendeu nada do que eu disse”.
8. A pior interpretação possível para uma proposição ou atitude do outro também surge pela simples falta de confiança verdadeira. Isso acontece até mesmo entre sócios que construíram um negócio juntos baseados em amizade, sustentada no passado por demonstrações reais de altruísmo e integridade. Não importa a natureza do conflito de interesses, uma leitura pejorativa de uma atitude ou posição que poderia ser até positiva pode causar uma hostilidade descabida. Essa “desconfiança” das reais intenções e significados por trás de uma iniciativa pode ter inúmeras explicações – enquanto não se descobrir a mais justa e autêntica, o desequilíbrio instalado no relacionamento poderá produzir um terremoto mais adiante.
9. Conflitos podem surgir pela dificuldade de uma das partes enxergar e romper com “amarras de compromissos”. A função primordial de um gestor é tomar decisões. E a cada decisão o gestor assume um compromisso, seja uma diretriz estratégica, premissas para um novo contrato, recursos adquiridos, mudanças em processos ou relações de trabalho, e assim por diante. Alterações de contexto, seja por mudanças de mercado, avanços tecnológicos, regulatórios ou setoriais, talvez sejam possíveis – e até mesmo necessário que a empresa reveja decisões tomadas no passado. A resistência em transformar um compromisso assumido pode colocar um gestor em situação de conflito com outro, por divergências de opinião quanto à melhor conduta diante da nova decisão a ser tomada. Esclarecer as motivações para a mudança e conduzir o processo de forma estruturada e em acordo mútuo é fundamental para superar uma disputa dessa natureza. Vale a pena ler o artigo “Amarras dos Compromissos”, no qual descrevemos com detalhes essa dinâmica.
10. Hostilidades também são sustentadas pela dificuldade que uma ou ambas as partes têm de fazer concessões e virar a página. Por motivos diversos, mesmo que todos os argumentos de uma contenda sejam esclarecidos, é muito comum a dificuldade de colocar um ponto-final no debate. Embora possam até chegar a um acordo para encerrarem o conflito, o desentendimento permanece porque uma das partes não consegue deixar de atribuir seus próprios significados às atitudes ou pensamento do outro. Essa resistência em aceitar o ponto de vista do outro e a manutenção da causa original da discórdia fragiliza o vínculo e não permite a cura das fraturas. Ao contrário, produz um calcanhar de Aquiles que em algum momento vai trazer aquele esgoto de volta. Virar a página também pressupõe ceder em alguma posição ou exigência, em prol de um propósito comum e maior. Saber abrir mão para romper o looping do conflito e seguir em frente, sem olhar para trás, talvez seja um dos maiores desafios que vivemos todos os dias em nossos relacionamentos.
Naturalmente que não contemplamos neste texto conflitos causados por traição, corrupção, descoberta de práticas criminosas ou desonestas, atitudes de má-fé por desatino repentino ou desvio de caráter, dentre outros. Conflitos dessa natureza, quando descobertas suas causas, provocam um rompimento abrupto e são solucionados com o auxílio de bons advogados.
No entanto, em nossa experiência em arbitragem, de modo geral constatamos que conflitos são disparados por um dos dez gatilhos que procuramos descrever brevemente, ou por uma combinação deles. Observe, ainda, que todos eles têm em sua origem a mesma natureza: falhas de comunicação. Choques e brigas surgem não pelo que é dito em si, mas pela forma como é dito. Descobrir a anatomia do conflito e tomar consciência de sua dinâmica são os primeiros passos para encontrar uma solução definitiva para o embate e restaurar o equilíbrio do relacionamento. Abalar ou enterrar relacionamentos valiosos por um descontrole do efeito dominó de desentendimentos derivados de uma divergência é um erro que devemos combater com todo empenho. Caso contrário, o arrependimento poderá, um dia, roubar noites de bom sono e, por mais que você queira, não há como voltar no tempo e refazer a história com um final mais feliz.
Thanks, great article.
Caríssimo Fernando Luzio,
Fico-lhe muito grato pelo precioso artigo e principalmente pela grata lembrança de nossa conversa na qual me causou uma impressão indelével de troca.
Li seu artigo com atenção e muitas coisas foram colocadas de forma clara e direta no que tange a arbitragem de conflitos em vossa experiência profissional.
Vou passar algumas coisas que aprendi de meu mentor quando em tenra idade e jovem gerente.
Meu mentor foi militar paraquedista e muita coisa de seus ensinamentos foram adaptadas para a área de negócios.
1. No pensamento militar, como em seu artigo, em tudo há uma origem. Saber detectar frente a uma dificuldade a sua origem… é o ponto principal.
2. Sempre no meio militar ao descobrir a origem, inicia-se ações para “eliminar “ a mesma. Coisa extremamente difícil de se fazer no mundo dos negócios. Pois para o militar é só mandar uma equipe para enfrentar a “origem”. (lembro Steve Jobs, que “cortou o mal pela raiz” – dispensando e afastando inimigos, parceiros antigos e até mesmo amigos pessoais para tomar novos rumos sem “contestação” para refazer a APPLE).
3. Observar a origem do problema da APPLE, fez com que Steve Jobs se aliasse com o “traidor” Gates para ter dinheiro (solução para “eliminar “o gerador do problema…) e dar o restart da APPLE.
4. Estudar o inimigo e perceber que a mesma tinha também a Origem de um problema que a MICROSOFT estava naquele momento enfrentado… “monopólio do mercado”, Jobs fez uma interessante negociação na qual manter a APPLE viva pela MICROSOFT, manteria o mercado sem o dito “monopólio”.
5. Voltando ao vosso artigo: o conflito realmente (como descreve muitas vezes) é fruto de falta de comunicação e principalmente da correta transmissão e entendimento.
6. É correto como diz em seu trabalho, que colocar a “ênfase” pessoal de juízo de valor e/ou a convicção pessoal /ego em certas discussões realmente complicam ainda mais a decisão pelo caminho correto de uma solução.
7. Explico às minhas equipes que o grupo militar é o mais eficiente para atingir um objetivo. Pois a primeira coisa desenvolvida é a confiança entre todos da equipe. Se, por exemplo , um soldado foi designado para manter vigília, durante a noite. Todos devem ter a confiança de que ele fará o serviço da melhor forma possível, pois se não confiarem, não dormirão… no dia seguinte em luta estarão cansados e todos podem morrer…. o ênfase, da morte de todos pela falta de confiança é um interessante fator a ser explorado junto a uma missão ou objetivo que uma equipe de empresa deve executar…
8. O método militar para definir as ações possui um erro inerente a sua anatomia: as decisões são feitas e aceitas pela hierarquia de forma rígida.
9. Se tomarmos cuidado de estudar a vida dos grandes generais, pode-se observar que possuíam grandes comandados na qual fluíam conselhos ao líder que decide.
10. Portanto a falha da forma “militar” de trabalho (a hierarquia rígida como fator de ações), muitas vezes é utilizada da seguinte forma: – “se o chefe falou pra fazer…temos que fazer…” ( General mandou atacar …mesmo sabendo dos riscos….). É uma das grandes falhas ainda presente nos exércitos e empresas pelo mundo afora.
De novo, cito Steve Jobs em seu retorno a APPLE, na qual em reunião com os “designers” iniciou dizendo que tudo aquilo era um lixo!!
Porém de imediato, falou a o então gerente de Design Jonathan Ive: – diga-me como você definiria a APPLE em design e como você poderia contribuir?
Disse Ive: – sempre admirei o Sr. Jobs por uma vez ter dito que gostaria que os produtos APPLE fossem fáceis de serem usados por pessoas comuns. E na minha definição temos que ter uma beleza, uma qualidade, com poucos controles e navegação extremamente simples!
-OK, Sr. Ives! Me mostre este conceito um uma semana….
Surgiu o IMAC colorido, o IPOD, o IPHONE….. ( com um só botão para executar praticamente todas as coisas….).
Jobs tinha apesar de sua teimosia lendária, ouvidos para o “tenente” que tinha conhecimento maior e personalidade de mostrar suas convicções….
Parabéns pelo artigo, Luzio!
Caro Luiz,
Muito obrigado pelo seu comentário!
De fato os militares são especialistas em conflitos e a identificação da origem é realmente a chave para desenharmos uma solução definitiva. O problema é que o gestor brasileiro tem o hábito de procurar soluções para atacar os problemas, e não suas causas. Assim, adota-se um remédio para os sintomas e não para bloquear a origem dos problemas. Solucionar conflitos segue a mesma lógica: não adianta paliativos. Temos de descobrir a causa para trabalhar o bloqueio ou transformação desta causa. Caso contrário o conflito voltará a emergir logo depois.
Também sou fã do Steve Jobs e do Case Apple, cheio de ensinamentos sobre conflitos. Alguns novos livros de ex-Apples dizem que ele não era tão tirano assim, e que seu jeito duro era parte do processo de lidar com tantas vaidades e diferentes percepções sobre o mesmo fato. Era o jeito dele de lidar com tantas realidades distintas. Também não sou “Poliana” e sei dos defeitos dele como líder, mas ele também tinha muitas qualidades.
Forte abraço,
Fernando Luzio